O Biography Channel devia receber o "Prémio OMO" pelas lavagens mais imaculadas dos seus queridos biografados.
Misantropos irremediáveis, actores medianos com carreiras malogradas na tela mas ascendentes na insolvência, artistas alcoólicos, noctívagos violentos, políticos carreiristas e, em geral, pessoas definitivamente intratáveis são descritos, pelos embevecidos locutores, como sujeitos "exuberantes", "determinados", "belos", correspondendo todos, de uma forma geral, à síntese perfeita entre um lote de Prémios Nobel (de todas as categorias) e um(a) top model internacional.
Em face disto, fiquei entusiasmadíssimo quando, há uns tempos, anunciaram o relato biográfico de Mike Tyson, esse lírio delicado e encantador de cuja boca perfeitamente delineada saíram frases como "[He] called me a ‘rapist’ and a ‘recluse.’ I’m not a recluse." e, sobre Lennox Lewis, "I want to rip out his heart and feed it to him. I want to kill people. I want to rip their stomachs out and eat their children.". Para além do episódio memorável em que arrancou parte da orelha de Evander Holyfield com os dentes, a sua carreira de criatura acabadamente odiosa incluiu outros marcos menos mediáticos, como alegres passagens pelo espancamento e violação de mulheres, jovial pancadaria em jornalistas, fotógrafos, transeuntes e toda e qualquer pessoa que, por azar, lhe passasse à frente quando começava a salivar. Pelo caminho, passou uns tempos engaiolado. O muito dinheiro que ganhou foi desbaratado nas mais refinadas inconsciências ou desviado por parasitas, que não sabia controlar.
Este era o Mike Tyson que eu conhecia, não o querubim desdentado que o Biography Channel me apresentou. Afinal, tratava-se apenas de um menino da rua, de sorriso maroto mas indissolúvel inocência, que foi constantamente manipulado por tudo e por todos: mulheres, agentes, supostos amigos, tribunais, o "sistema", mamíferos em geral e Don King. Sim, houve ali algumas fases com uma ténue propensão a violência, mas compreendem-se, já que a tensão decorrente dos abusos que sofria dos outros tinha de escapar de alguma forma. Assim foi menos mal. Só no episódio de Holyfield perpassou uma sombrinha muito ligeira de discurso de responsabilização, mas logo se extinguiu. Aliás, a ideia de responsabilidade é tema de risota nas conversas junto à máquina do café dos estúdios do Biography Channel.
Fiquei viciado no canal. Mal posso esperar por ver a biografia daquele senhor de bigode que sonhava com um mundo melhor e tudo fez por mudá-lo, começando na Polónia em 1939, ou a
daquele filantropo que quis reformar a agricultura do Camboja, passando por todos aqueles benfeitores que diariamente vendem armas para que os pobres africanos se possam defender uns dos outros.