23.12.05

Tributo Justo a Augusto, o dito, num pálido arremedo da linguagem do próprio

Passeava eu um destes dias os pés cansados pelas calçadas gastas de uma terra ignota onde um dia a viúva de Hermenegildo Mendes mandou erguer um mosteiro e eis que dou de caras com a singular figura de Augusto Justo, generoso escriba de um magnífico expositor de saber transversal. De súbito emocionado, pois que o conheci antes mesmo de ele se volver em verdadeiro Jean Baudrillard acidentalmente caído no caldeirão da poção mágica de Gabriel Alves, estendi-lhe a mão calosa, reprimindo uma lágrima. Igual a si mesmo, Augusto, o Justo, não perdeu tempo com escusados cumprimentos e prontamente me atirou, à laia de intróito, uma tirada de primeira água, com o desassombro de um Paul de Man dissecando John Keats: "já viste que trazes a braguilha aberta, pá?". Logo me verguei perante a espantosa verve deste Homem, que, sem apegos tolos ao incomensurável estatuto intelectual que a comunidade da virtual pangeia filosófica lhe reconhece e em cada momento fermenta, desce do seu pedestal e se digna comentar o trivial desleixo que os meus habituais ademanes desviam da atenção do vulgo. Esmagado perante tão singela manifestação de abnegação, emudeci e não fui capaz de dizer-lhe que me sentia um seu discípulo. Ousei até sonhar que poderíamos formar uma dupla criativa, quais Gilles Deleuze e Félix Guattari - ideal tolice justificada pela verdura dos anos: não sonhou um dia o Fernando Rocha ser Jerry Seinfeld ou o saci-pererê ter duas pernas? - mas ficaria feliz se apenas me deixasse barrar-lhe uma torrada, ainda que a não comesse ou a regurgitasse.
Augusto Justo depositou em minhas mãos um óbolo prenhe de significados - uma moeda de cinquenta cêntimos - que acompanhou, na sua habitual e densa linguagem cifrada, cujo sentido oculta atrás de cem véus diáfanos, o seguinte dito: "toma lá, para tomares um galão".
Ainda hoje tal sentença faz vibrar o nervo auditivo deste apóstolo. Até a minha relação segura com os derivados mistos de lactose e cafeína se dissolveu no preparado orginal daquela frase, que contemplo idealmente qual gravura de Julia Kristeva em trajes menores, como a que penduro à cabeceira da cama.
Hoje, sorvo um galão em sua homeagem e desejo-lhe um Natal Feliz e um 2006 pleno de pós-modernismo, tirando o chapéu ao legado da prosa que verte em jorros épicos e intermináveis, como os do pescoço da Hidra de Lerna, na arremetida final de Hércules.