11.2.06

Crónica Social do Incontinental - O jantar da embaixada em Damasco

O Incontinental dispõe de uma secção de crónica social que marca presença nos principais eventos à escala global. A nossa enviada à Síria enviou um relato inédito do jantar e baile da embaixada da Suécia em Damasco que decorreu ontem, relato esse que agora transcrevemos, não na sua provisória versão original, mas sim adaptado por um solícito funcionário do Governo Sírio.

"O jantar volante da embaixada sueca foi lindíssimo e representou uma variação simpática da pasmaceira habitual, face à qual nem conseguimos bocejar sem que uma tempestade nos encha a boca de areia. Todas - mas mesmo todas - as pessoas importantes de Damasco estavam presentes. Não vi jornalistas locais, mas explicaram-me que estes têm por hábito escrever crónicas sobre actos oficiais à distância, mantendo porém a objectividade, graças a elaboradíssimos exercícios de dedução lógica.
No centro da sala, uma janela enorme oferecia uma vista ampla da cidade, apesar de poucas casas terem luz. Ao que pude apurar, através de um membro do Governo, o elevadíssimo nível de vida dos sírios permite-lhes, com muita facilidade, passar os fins-de-semana nos Alpes, pelo que poucas pessoas seriam visíveis na cidade. Porém, num gesto espontâneo de boa vizinhança, alguns jovens de barba improvisaram uma fogueira na embaixada da Dinamarca, ao fundo da rua, o que emprestava um colorido especial à zona. Eram cerca de cinquenta e, para evitar acidentes, quatro polícias controlavam os ânimos, enquantro outros dois distribuíam práticas latas de gasolina, nas traseiras, aparentemente de graça.
Um líder religioso brindou-me com uma lição breve do islão, lamentando a constante deturpação dos ensinamentos de Maomé. Salientou que, por sua parte, costuma estimular o pensamento individual, fazendo pausas de um ou dois segundos nas suas prédicas de cinco horas consecutivas. Salientou-me a importância de respeitar a proibição de beber e fumar. No entanto, passadas umas horas de festa, foi com alguma euforia que tentou contar-me uma anedota que esqueci e começava mais ou menos com "Um dia, Jesus entrou, com os apóstolos, num bar de Marias Madalenas...".
O Presidente Al-Assad estava impecável, com a sua tradicional pose de Estado. É um líder amado pelo seu povo, que o elegeu, em sufrágio convicto, por 97,29% dos votos em 2000 (percentagem normalíssima em democracias consolidadas). Aceita com resignação este ónus, que o seu pai também suportou. Contra a vontade do Presidente, as pessoas insistem em decorar pracetas e recantos com estátuas suas em bronze.
Pela conversa do Ministro dos Negócios Estrangeiros, fiquei a saber que a Síria é um Estado pacifista e generoso, demarcando-se claramente de actos terroristas e de apoio ao terrorismo. Aliás, na fronteira com o Iraque está uma pequena placa que visa fomentar o remorso por actos terroristas. A Síria dispõe-se frequentemente a acolhar bombistas iraquianos, discretamente, durante algum tempo, para tentar convertê-los ao pacifismo, num programa chamado "Terroristas Anónimos". Não se sabe quantos se converteram, mas todos os que frequentam o programa são depois deixados perto de embaixadas ocidentais ou conduzidos de volta à fronteira, num camião, em plena noite, pois sofrem de fotofobia.
Houve pouquíssimos e breves tempos mortos. Num deles, conheci o pequeno Achmed, um miúdo amoroso de onze anitos, que se cansou da escola e decidiu, com aquele espírito empreendedor que o Governo local fomenta, iniciar um negócio de servir às mesas. Descreveu-me sumariamente a sua vida, desde a casa (que deve ser enorme, porque, em três divisões, cabem também os pais dele, oito irmãos e um número variável de primos) às brincadeiras com amigos (ainda ontem espalharam pela vizinhança que o dono da mercearia se chamava, na verdade, Soren Rasmussen - o que foi muito apreciado, crê-se que até mesmo pelo próprio "Soren", cujo paradeiro concreto se desconhece).
Diverti-me a valer. A comida picante estimulou-me e fartei-me de dançar músicas tradicionais sírias, como a "Balada da neve que não temos e nunca vimos" e "O meu coração rebenta de amor, como um explosivo plástico de fabrico americano". A partir das seis da manhã não me lembro do que fiz, mas sei que, pelas 8, acordei despida descendo o Eufrates num pequeno barco, segurando, numa mão, barbas postiças e, na outra, um papel onde estava escrito um número de telefone de três dígitos do poupado sistema de comunicações sírio".