5.1.06

Carta aberta a um jovem que acompanha qualquer um dos candidatos à Presidência e aparece cerca de três filas atrás dele

Caro amigo:
Vi-te ontem na televisão. Surgias atrás do teu candidato. Não logo atrás, mas seguramente na terceira fila do séquito. Apareceste alguns momentos, quando todos se inclinaram para a direita e tu arrancaste um pouco atrasado. Não te via há alguns anos. Estás crescido, já não tens borbulhas e, se não me lembrasse da forma convicta como lideravas a turma na escola, diria que estavas feliz apenas por ser um seguidor. Guardo ainda aquela fotografia que tirámos todos, em que aparecias ao centro, olhando a câmara como quem acabara de caçar todos os outros num safari. Na faculdade, sempre te dedicaste muito à política. Era lendária a tua habilidade para colar cartazes. Não me lembro bem das intervenções que fizeste nas discussões propriamente políticas que íamos tendo. Nesses momentos guardavas-te com discreta dignidade. A certa altura, começaste a aparecer menos, a não ser por alturas de eleições para a associação, em que me explicavas, muito paciente, como o teu ponto de vista ia mudar a vida de todos e a minha por arrasto. Era para perguntar quem te pagava os autocolantes. Passou-me e agora é tarde. Fazias-me sentir especial, pela atenção que me davas, mas via que outros cabiam no teu grande coração, pois também eles eram especiais, felizmente para ti. Nem vais acreditar nisto, mas não me recordo de ver o teu nome na pauta, apesar de seres um aluno excelente. Bem... Penso que eras, porque conseguiste aquele emprego de destaque assim que acabaste o curso. Até comentaste, então, que havia muitos desempregados que não queriam trabalhar e que tu não tiveste problema nenhum. Chamaram-te logo para aquele instituto de cujo nome não me recordo. Depois, passaram-se tempos e tempos em que lia notícias tuas no jornal local e julgava reconhecer-te, a preto e branco, meio desbotado pelas nódoas de café, apertando a mão, sorridente, àquele senhor que foi condenado há dias por peculato, mas recorreu da sentença.
Vejo que progrediste, desde então. Pela posição que ocupas, nessa terceira fila, antevejo funções de responsabilidade. Sagaz como és, sabes distinguir entre a velhinha lambuzadora e o cuspidor insidioso e ambos impedes de importunar a relíquia viva que proteges. Sei que nem tudo são rosas. Tens que andar muito a pé, mas faz-te bem, porque passas a vida em reuniões. Ainda não ocupas a posição de um verdadeiro conselheiro, mas o líder perguntou-te, há uns tempos, o que achavas da gravata dele e pareceu mesmo que ia esperar que respondesses. De eleição em eleição, vais avançando da terceira para a segunda e desta para a primeira fila dos seguidores, onde a câmara de televisão já foca e podes oferecer ao mundo a tua face, como o emplastro, mas com um ar de aprovadora seriedade. Entretanto, terás que vencer todos os que se interpõem neste percurso, principalmente aqueles que interrompem constantemente toda a gente na preparação das acções, lá no partido, chamando a atenção para "incoerências" da mensagem, "banalidades" do discurso e querendo, à força toda, discutir assuntos que afirmam ser importantes mas tu sabes bem que não existe para eles, ainda, "oportunidade política". Deixa lá. Esses, daqui a uns anos, cansaram-se de tudo. São, à partida, derrotados. Aos quarenta, terão desaparecido e tu ainda lá estarás para dar e durar.
Deixo-te agora com os pés de molho, a descansar, no quarto de hotel da cidade de onde arranca a campanha amanhã cedinho. Enquanto olhas a rua da janela, estremece-te por um momento a ideia de que ainda não fizeste nada na vida. Logo a esqueces: que tolice! Fizeste muito e vais fazer ainda mais do que sabes melhor. Por hoje, contenta-te com polir os sapatos. Para o resto, já faltou mais...